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sexta-feira, 2 de março de 2012

Revista Vértices comemora 15 anos

A Revista Vértices comemora 15 anos de existência e para que todos possam conhecer um pouco de seu sucesso e suas publicações, postaremos toda semana um artigo de uma de suas edições. Esta semana postaremos um dos artigos da Revista Vértices 12 número 1, publicada em 2010.


Artigo: Nove Noites: o labirinto de vozes
Nine nights: the labyrinth of voices


Rodrigo Corrêa Martins Machado*
Rosana Aparecida de Paula**
                                       Simone Cristina Mendonça de Souza***                     



O romance Nove Noites, de Bernardo Carvalho, foi publicado em 2002 e já alcançou consagração. Nesta obra, Carvalho emaranha realidade (História) e ficção, bem como trabalha com um jogo de múltiplas vozes na construção do discurso. O romance abre margens para a crítica literária em dois sentidos distintos, mas que, ao mesmo tempo, se complementam: o estudo da relação entre ficção e história e também sobre a polifonia, conceito definido e teorizado por Mikhail Bakhtin. Por acreditarmos na complementaridade das duas linhas de análise crítica, esse trabalho pretende fazer um estudo sob as duas linhas de análise citadas.

Palavras- chave: Bernardo Carvalho. Nove Noites. Literatura e História. Polifonia.


The novel Nine Nights by Bernardo Carvalho, was published in 2002 and has been wide acclaimed In this book, Carvalho entangled reality (history) and fiction, and works with a set of multiple voices in the construction of discourse. The novel is open for literary criticism in two different senses which, at the same time, complement each other: the study of the relationship between fiction and history, and polyphony, a concept defined and theorized by Mikhail Bakhtin. Because we believe in the complementarity of these two lines of critical analysis, this paper intends to do a study under these two perspectives of analysis.

Key-words: Bernardo Carvalho.
Nine Nights. Literature and History. Polyphony.


 1 Nove noites: (há?) limites entre verdade e ficção

A história, a ficção e a intertextualidade são elementos constitutivos de um novo paradigma literário no mundo moderno, chamado, por Linda Hutcheon (1991), metaficção historiográfica.  Esta nasce da junção da literatura e da história, por parte dos romancistas. Ela consiste no ato de um autor, através de seu romance, repensar o fato histórico e buscar um novo sentido à história anteriormente conhecida. Não raras vezes iremos nos deparar na contemporaneidade, com o diálogo entre história, jornalismo e ficção.
A história é considerada como dentro de uma categoria de escrita classificada por Hayden White (1994) como “escrita discursiva” e é recorrente a presença do elemento ficcional. Os historiadores, ao fazerem suas pesquisas, não lidam com fatos completos e sim com fragmentos. Para juntar esses fragmentos a fim de formar um todo significativo, eles têm de “inventar” parte dos fatos.  Hayden White afirma que:

O modo como um a determinada situação histórica deve ser configurada depende da sutileza com que o historiador harmoniza a estrutura específica de enredo com o conjunto de acontecimentos históricos aos quais deseja conferir um sentido particular.Trata-se essencialmente de uma operação literária, vale dizer, criadora de ficção.(WHITE, 1994c, p.102).

Sabemos que o historiador e o escritor têm em seus textos várias possibilidades diferentes de interpretá-los. Enquanto o escritor muitas vezes nos aponta essas várias direções, o historiador se liberta de algumas possibilidades visionais e foca somente em uma, naquela em que ele mais identifica seus valores, que julga ser a verdadeira; podemos notar que o discurso histórico nada mais é que um discurso figurativo moldado por seus estudiosos.
A ligação entre o histórico e o ficcional deve ser vista como precursora de uma das possibilidades de se ampliar o âmbito e o valor da ficção. Só enriquece a História e a ficção, na medida em que faz com que a memória humana e a forma artística se unam, alimentando “os sistemas de significação da nossa cultura”. (HUTCHEON, 1991, p.176).
A metaficção historiográfica nada mais é que a junção de três elementos: história, ficção e intertextualidade, a fim de criar uma nova forma artística que questione valores, pense por si própria e que não busque uma verdade, mas mostre todas as outras que poderiam existir.
Muitos escritores estão se ingressando na escrita de metaficções historiográficas. Eles utilizam fatos, os remodelam para construir uma nova história e até mesmo “um mundo novo”; utilizam os fatos narrados pelos historiadores e fazem exatamente o que os historiadores fizeram um dia, mas ao invés de preencher as lacunas existentes entre um documento e outro, eles reinventam a História, a fim de que se adequem a seus pensamentos, as histórias que julgam mais condizentes com a verdade.
O autor, muitas vezes, como é o caso de José Saramago em Memorial do Convento, reinventa a História, a fim de que os oprimidos, antes esquecidos pela historiografia de seu país, ganhem voz no discurso e histórico e recebam as honras de quem, realmente, trabalhou para a construção de um país.
Essa metaficção historiográfica não questiona somente os valores historiográficos, ela questiona e critica os valores da sociedade tanto de ontem como de hoje. Os escritores “investem na escrita de uma história transfigurada com vestes ficcionais”. Para tanto, resgatam acontecimentos do passado e fazem com que os leitores repensem tais fatos e possam também de maneira crítica reinterpretá-los de acordo com sua própria ótica (ROANI, 2006, p.36).
É nessa linha da metaficção historiográfica que Bernardo Carvalho escreve seu romance. A leitura de Nove Noites costuma despertar nos leitores, como primeira impressão, o questionamento acerca do que é ficção e o que é realmente “verdade” nesse romance.
Plausível questionamento, uma vez que a narrativa se fundamenta em um acontecimento verídico, a morte do antropólogo norte-americano Buell Quain – que viveu entre os índios Krahô, no Tocantins, e se matou em 1939 – mas que se entrelaça a fatos e personagens fictícios. É a partir desse fato que o enredo se desenvolve, somando as intervenções de um fictício amigo de Buell, com quem ele teria conversado nove noites antes de seu suicídio, que era um jornalista interessado em escrever um romance sobre a história do suicídio de Quain.
Não há, dessa forma, um único narrador; há, de um lado, um morador de uma cidade onde Buell Quain frequentava – por ser a mais próxima da aldeia onde estava - e que, aos poucos, se aproxima dele e torna-se seu confidente durante nove noites. Intercaladas aos relatos desse morador, emergem as narrativas de um homem que afirma ter pesquisado a vida do antropólogo com o intuito de escrever um livro sobre a morte desse.
O primeiro capítulo do livro é uma exortação do “amigo” de Buell a quem futuramente vier a pesquisar a morte do antropólogo:

Quando vier à procura do que o passado enterrou, é preciso saber que estará às portas de uma terra em que a memória não pode ser exumada, pois o segredo, sendo o único bem que se leva para o túmulo, é também a única herança que se deixa aos que ficam, como você e eu, à espera de um sentido, nem que seja pela suposição do mistério, para acabar morrendo de curiosidade. Passei anos à sua espera, seja você quem for, contando apenas com o que eu sabia e mais ninguém, mas já não posso contar com a sorte e deixar desaparecer comigo o que confiei à memória [...] Amanhã pego a bolsa de volta para Carolina. Mas antes deixo este testamento para quando você vier e deparar com a incerteza mais absoluta (CARVALHO, 2008, p.11).

No capítulo seguinte, a voz é a do jornalista que narra a descoberta da história de Buell Quain e a forma pela qual se interessou em escrever o romance:

Ninguém nunca me perguntou. E por isso também nunca precisei responder. Não posso dizer que nunca tivesse ouvido falar nele, mas a verdade é que não fazia a menor idéia de quem ele era até ler o nome de Buell Quain pela primeira vez num artigo de jornal (...)quase sessenta e dois anos depois de sua morte às vésperas da  2ª Guerra. (...) O artigo tratava das cartas de outro antropólogo, que também havia morrido entre os índios do Brasil (...) e citava de passagem, em uma única frase, por analogia, o caso de Buell Quain, que se suicidou entre os índios Krahô, em agosto de 1939 (CARVALHO, 2008, p.13).

A partir daí, o jornalista se envolverá com várias pessoas que conviveram com o antropólogo. A primeira que procura é a antropóloga Mariza Corrêa, que havia escrito o artigo que lera. É a antropóloga que dá ao jornalista ideias, ainda que vagas, de quem ele possa procurar.
Descobre que Buell viera para o Brasil sob orientação de Franz Boas, diretor do departamento de antropologia de Columbia, interessado na riqueza etnológica brasileira. Aqui no Brasil, passou a ser orientado pela pesquisadora Heloísa Alberto Torres. Descobre também que Buell Quain viera com intuito inicial de estudar a vida dos índios Karajá, mas ao tomar consciência de que os Trumai estavam em vias de extinção, decide pesquisá-los.
As pessoas com as quais Buell tinha mantido contato, e que o jornalista usa como fonte de investigação, apresentam fatos diversos e, por vezes, contraditórios. O trabalho do jornalista é dificultado pelo fato de o antropólogo ter deixado cartas aos seus conhecidos, com opiniões contraditórias. Em algumas, descrevia o Brasil como uma terra de maus hábitos e de gente rude; já em outras, trata a gente que conheceu aqui como civilizada e pacata.
As contradições serão muitas, na pesquisa do jornalista, como já havia exposto o “amigo” de Quain, sobre as várias versões que a história assumiu. O certo é que entre os relatos, fica evidente o tom melancólico e solitário de Quain. O antropólogo era homem de poucos amigos e conversas, com frequentes pensamentos ligados à morte:

O importante ele me disse ainda na primeira noite em Carolina, sem que eu pudesse entender do que realmente falava, ' é que os Trumai vêm na morte uma saída e uma libertação dos seus temores e sofrimentos'. [...] Agora, quando penso nas suas palavras cheias de entusiasmo e tristeza , me parece que ele tinha encontrado um povo cuja cultura era a representação coletiva do desespero que ele próprio vivia como um traço de personalidade (CARVALHO, 2008, p.51).

O jornalista renova suas esperanças investigativas ao conhecer um casal de antropólogos, que conheciam um dos índios da época em que Buell havia cometido o suicídio. Por esse motivo, decide ir à aldeia dos Krahô, para conversar com esse índio. Mais uma vez, não descobre nada de relevante.
Em meio a tantas pistas falsas e sem sentido, no momento em que o pai do jornalista está no hospital, ele acaba presenciando a morte de um americano, que lhe diz as últimas palavras como se ele, o jornalista, fosse o Buell.
Por causa desse momento que, ao ler o nome de Buell Quain, no artigo, o jornalista se lembra dessa pronúncia “Bill Cohen!” e faz uma descoberta: aquele homem que havia morrido perto dele no hospital era o fotógrafo que havia se tornado amigo de Buell Quain.
Na esperança de que a família desse fotógrafo pudesse ajudá-lo, vai ao asilo onde ele havia passado seus últimos anos de vida e consegue o endereço do filho do fotógrafo. Ao chegar aos Estados Unidos, o jornalista, disfarçado de empregado de uma companhia de transportes, consegue entrar na casa do filho do fotógrafo e lá descobre que aquele homem não era filho legítimo; fato descoberto quando o fotógrafo estava no Brasil. Mas até mesmo esse fato da paternidade é colocado em questão, o que comprova a citação a seguir: “Não são só os índios que dizem o que você quer ouvir, achando que assim podem agradá-lo, como se não houvesse realidade.” (CARVALHO, 2008, p.147).
Fica subentendido que a história da falsa paternidade é uma desculpa, uma mentira inventada pelo homem, para se desvincular de qualquer responsabilidade. Assim como os índios, então, entre os familiares do fotógrafo não se poderia esperar verdades.
As dúvidas persistem, e os detalhes insistem em confundir o leitor, uma vez que o jornalista chega a afirmar que aquele homem se parecia muito com Buell Quain. Os fatos se misturam, se confundem e a explicação que fica é a que o jornalista dá quando chega nos Estados Unidos: “A ficção começou no dia em que botei os pés nos Estados Unidos.”(CARVALHO, 2008, p. 142)
A morte de Buell Quain é desvendada? Não. Fica o mistério que a envolveu e a “contribuição” temática que deu para a composição do romance que busca a todo momento fatos para o compor.
O jornalista encontra, ao voltar de avião para o Brasil, um rapaz “de cabelos cacheados, olhar simpático, embora fosse feio”, que vinha ao seu lado,  e dizia vir ao Brasil estudar os índios. Instigador? Mais um motivo de reflexão? Poderia até ser, mas o jornalista já está convencido de que a verdade não é fácil de ser encontrada, a ficção já é o caminho pelo qual se engendrará.

Nessa hora, me lembrei sem mais nem menos de ter visto uma vez, num desses programas de televisão sobre as antigas civilizações, que os Nazca do deserto dom Peru cortavam as línguas dos mortos e as amarravam num saquinho para que nunca mais atormentassem os vivos (CARVALHO, 2008, p.150).

Os limites entre verdade e ficção são tênues e o resultado de toda a pesquisa do jornalista não são fatores que nos levam a acreditar que a obra retrata a morte do antropólogo de forma verídica. Nas palavras de Bernardo Carvalho:

Esse é um livro de ficção, embora esteja baseado em fatos e pessoas reais. É uma combinação de memória e imaginação – como todo romance, em maior ou menor grau, de forma mais ou menos direta (CARVALHO, 2008, p.9).
           
O que é mais visível é a forma pela qual várias “verdades”, vários discursos se entrecruzam, de forma que não é possível desvendar o que é  real do que é ficção.
É interessante observar que o romance, na verdade, não narra a história do suicídio de Buell Quain, como podemos ser levados a pensar inicialmente, mas é um romance que fala da busca de fatos para a composição de um romance.  É metalinguístico? Sim. Trata-se de um romance que fala sobre o processo de criação de um romance e as implicações entre realidade e ficção. No fim, um questionamento sonda a mente do leitor: Faço literatura por que não consigo escrever a verdade das coisas e fatos? Existe a verdade? Essas perguntas são provocações que não têm resposta exata ou direta, assim como a morte de Buell Quain.

2. A polifonia em nove noites

Para Mikhail Bakhtin (1997), Dostoievski foi o criador de um novo gênero literário, o romance polifônico, cuja característica principal é o fato de que na obra do romancista as vozes do texto não se sujeitam a um narrador centralizante; elas se relacionam em condições de igualdade. Há a predominância do discurso do outro interiormente dialogado e refletido, com a alternância de várias vozes.
É o que ocorre em Nove Noites. A história central, ou seja, a descoberta dos motivos que levaram ao suicídio de Buell Quain, não é submetida a uma voz centralizadora; pelo contrário, várias vozes se entrecruzam na tentativa de desvendar a morte do antropólogo.
Há duas vozes principais, estruturadoras do romance – a do jornalista e a do  morador que se diz amigo de Buell –, e “subvozes”, que auxiliam na construção “ labiríntica” da narrativa, caracterizando a obra como um romance polifônico. A construção romanesca, neste caso, é desenvolvida através de duas partes paralelas, que se intercalam com o desenvolvimento do enredo: de um lado uma voz de uma pessoa – um homem que morava no interior do Brasil, onde Buell foi estudar tribos indígenas – que diz ter passado nove noites antes da morte de Buell Quain junto dele e que escreve uma carta destinada a alguém tentando esclarecer os fatos da morte do antropólogo; e de outro lado, temos um homem que lê sobre a morte do antropólogo americano em um jornal e se interessa em buscar desvendar o motivo que levou o jovem a se matar.
 No romance Nove Noites, a polifonia e a autonomia discursiva atribuídas às diferentes personagens criam uma dimensão democrática da estrutura do romance. Todas as personagens têm voz ativa e discutem entre si. Se levarmos em consideração a ideia que em todo discurso sempre temos um locutor e um interlocutor que buscam se influenciar, afim de que possam convencer um ao outro, podemos dizer que todo esse diálogo presente na obra, entre os personagens e também entre personagens e leitor, quer convencer-nos das diversas possibilidades pelas quais o jovem antropólogo se matou.
Por um lado, temos o amigo de Buell na sua carta, que tenta nos mostrar que ele morreu por um motivo; enquanto por outro lado, temos o jornalista que nas suas pesquisas achou outro motivo, distinto do amigo de Buell, que o levou a inferir que o jovem morreu por outra causa.
Às vezes confundimos a palavra dialógico com polifônico. Para Bakhtin, dialógico por principio define um traço constitutivo da linguagem, em todas suas realizações, e polifônico, como vimos, é o fato de várias personagens terem voz ativa no texto; nessa mistura acrescenta-se o traço positivo das duas, que contempla todas as manifestações de forma democrática; “a polifonia dostoievskiana passaria e ser a marca de toda a prosa romanesca”. Daí, surge a idéia de não acabamento, a recusa da última palavra. Seria o gesto de aceitar todas as vozes como equivalentes, que é o fato marcante, senão o mais importante de seu texto. Podemos aceitar, com equivalência, todas as vozes presentes em Nove Noites, e cada uma delas possui sua verdade e sua importância (TEZZA, 2008, p.2).
Observamos que, no romance dialógico de Dostoiévski, o autor não introduz diretamente a sua voz, seus pensamentos e suas ideologias, ele não mostra a sua cara (no texto), sim a metamorfoseia em várias vozes. Essas vozes discutem entre si, estabelecendo um discurso intenso em todo o seu texto. Também assim ocorre com o romance de Bernardo Carvalho, no qual o autor não se mostra de maneira direta sua voz no texto, ele dá liberdade a suas personagens a fim de que elas possam dialogar dentro do livro e para que, dessa maneira, cada uma possa mostrar a sua própria verdade.
De acordo com Bakhtin (1997), não há, no texto de Dostoiévski, bem como no de Bernardo Carvalho, a presença da ideia de que quem está do lado de fora do texto seria o dono da verdade. A prosa de ambos os romancistas, então, se nutre da inteira relação entre autor e herói; a renúncia da autoridade do autor passa a ser um pressuposto indispensável. A linguagem deles é uma linguagem relativizada, desprovida de autoridade, o papel do narrador é nos dizer como as coisas são relativas, como não podemos ter certeza de nada.  
A palavra de quem fala no romance de Dostoievski é construída à imagem do homem que fala na vida concreta, esse fundamenta o poder de sua palavra na palavra do outro, claro, que conservando parte de sua visão de mundo original; nenhuma das duas palavras pode sumir na enunciação, a prosa é feita exatamente da discussão aberta entre elas- todo o tempo- pela divergência de idéias.
 É exatamente o que ocorre na carta a qual o amigo do antropólogo escreve, já que para redigi-la, buscando explicar a causa que levou o rapaz a se suicidar, este amigo se fundamenta nas conversas que ele teve com Buell – nove noites antes da morte – e infere o provável motivo. Ele somente busca comprovar o que acredita com pequenas partes de diálogo que teve com o jovem antes deste se suicidar. Esta enunciação é feita pala junção dos dois discursos – o que Buell contou ao amigo e o que o amigo acha – e o tempo todo eles estão em constante discussão. 
Isso acontece também com o jornalista que, para criar a sua própria verdade, passa todo o livro discutindo com diferentes vozes que julga importante, juntando o que elas dizem ao que ele já sabia, até chegar a uma conclusão e a uma criação da sua própria verdade, sem deixar de lado todos aqueles processos discursivos pelos quais já havia se submetido e muito menos sem deixar de lado a visão que ele tinha previamente construída desta história.
Pelo fato de haver um discurso constante na obra romanesca carvaliana, tem-se a impressão de que o autor e suas personagens falam a mesma linguagem. O importante não é identificarmos somente a fala destas, mas sim estabelecer sobre qual ângulo esses discursos se opõem ou se confrontam na obra, e qual a importância de dois discursos paralelos na obra. Nela predomina um discurso com o discurso do outro interiormente dialogado e refletido, este é de grande importância na medida em que não ocorre esse diálogo sem um olhar para a opinião do outro. O autor coloca dois discursos paralelos em sua obra, para poder dar um maior dialogismo dessa em relação aos leitores que a receberão, na medida em que eles terão que discutir internamente, para assim poderem chegar a uma conclusão sobre a morte do antropólogo. Ou autor deixa seus leitores livres para que possam construir, assim como o jornalista da obra, a partir dos dados oferecidos no livro, um possível desfecho que leve às causas do suicídio de Buell.
Em alguns pontos do romance carvaliano, há a narração da vida de Buell desde quando foi realizar seu estudo com os índios. Em algumas partes, podemos perceber que o pesquisador sempre buscou certa distância em relação a seu objeto de estudo, para viver uma “falsa” independência, já que, segundo Mikhail Bakhtin (1997), mesmo quando existe um afastamento, por parte do herói, de todas as pessoas que conhece, da sociedade, para viver sozinho e isolado, ele não consegue gozar desta sua falsa independência, pelo fato de que  começa a desenvolver um diálogo interno, consigo mesmo, convencendo-se, acalmando-se e representando o outro em relação a si mesmo. Assim, ele acaba criando uma segunda voz com a qual dialoga. Essas vozes distintas atuam numa relação de força, com os dois sujeitos históricos que se confrontam, tomando formas diferentes diante desse discurso que travam. O diálogo é tão importante que, quando não há com quem dialogar, a personagem cria outra, mesmo que internamente, para que possa discutir; ou seja, ”o diálogo permite que ele substitua com sua própria voz a voz de outra pessoa”. (BAKHTIN, 1997, p.214)
Quando Buell tenta fugir de toda essa solidão, ele busca conversar consigo mesmo e com os amigos, porém com estes, nas poucas vezes que vimos diálogo, foi através de cartas.
Esse dialogismo interior significa que, com o uso da linguagem concreta, viva, no evento do ser, haverá pelo menos dois pontos de vista distintos para entrar em ação, criando uma discussão. Isso nada mais é que o equilíbrio que o autor busca para suas personagens. Ele não quer mostrar que uma ou outra estão certas, mas sim contrapor suas ideias para que possam discuti-las, havendo outra opinião para ajudar o herói com seus medos e problemas.
 Da mesma forma que Bakhtin observa o dialogismo interior na obra romanesca de Dostoievski, podemos ver que em Nove Noites também há casos em que o herói, em seu discurso, tem um extremo diálogo interior, apelando para tudo o que pensa e fala, inclusive objetos que o cercam. Para ele, pensar no objeto seria apelar para ele. Ele apela para esse objeto porque sabe- mesmo intuitivamente- que sobre cada enunciação da linguagem concreta, além de seu dialogismo intrínseco, constituidor do sujeito, incidem outras linguagens, numa rede que engloba não só os interlocutores, mas também os objetos, objetos estes que se apresentam saturados de linguagem e valor. O próprio apego às palavras, ao ato de escrever cartas e de anotar tudo o que vivia e passava com os índios era uma forma de apelo, o jovem antropólogo buscava ajuda, até o momento que não mais suportando algo que o angustiava, que ele temia, suicidou-se.
As diferentes vozes presentes no livro não têm autoridade própria, não são totalmente autônomas. Em cada palavra, pronunciada por uma há interferência das outras, não se verifica um diálogo de consciências independentes. A palavra do outro influencia diretamente o estilo da novela, não há um discurso monológico e sim um discurso feito sob a tensão dialógica em toda a obra (BAKHTIN, 1997).
Em consequência desse fato, as duas vozes centralizadoras do romance carvaliano (a do fictício amigo de Buell e a do Jornalista) constroem seus discursos como réplica de todas as palavras, que ouviram dos outros e que os tocaram, reunidas por ambos de acordo com as experiências ouvidas e vividas. Cada pessoa com quem polemizam, desenvolve suas palavras com tons e acentos modificados – cada um tem uma maneira diferente de contar a trajetória de Buell Quain. Isso faz com que para os dois interessados na vida e morte do antropólogo americano, cada pessoa nada mais seja que um símbolo. Cada personagem entra nos discursos interiores como símbolo da resolução de seus problemas ideológicos, por isso cada uma o perturba e ganha papel em seu discurso interior. “Como resultado, seu discurso interior se desenvolve como um drama filosófico, onde as personagens são concepções de vida e mundo personificadas, realizadas no plano real” (BAKHTIN, 1997, p. 242).
Ao buscar a identidade, a verdade, nos dois discursos, seus “heróis” o fazem encontrando as diversas vozes, comparando-as, combinando-as, em busca de sua própria voz. As vozes presentes na obra são, muitas vezes, penetrantes e interferem segura e ativamente no discurso dos heróis para que possam ajudá-los a encontrar sua voz própria. Não podemos dizer que esse discurso penetrante é decisivo, pois os heróis principais também são marcados por um diálogo interior intranquilo e inconstante quanto o dos outros.
Em nenhum momento encontramos um discurso dominante, seja do autor ou das duas vozes centralizadoras do romance. Esse diálogo entre os elementos do texto é “um momento essencial da própria idéia do autor”. E para ocorrer a representação do homem interior, é necessário que mostre a comunicação dele com outro, pois somente na “interação do homem com o homem revela-se o “homem no homem” para outros e para si mesmo” (BAKHTIN, 1997, p. 256).
No romance de Bernardo Carvalho, “tudo se reduz ao diálogo, à contraposição dialógica enquanto centro. Tudo é meio, o diálogo é o fim. Uma só voz nada termina e nada resolve. Duas vozes são o mínimo de vida, o mínimo de existência” e o romance carvaliano nos traz uma infinidade de vozes, que fazem com que seu texto seja considerado altamente dialógico (BAKHTIN, 1997, p. 257).
Os próprios princípios de construção do autor são os mesmos das personagens, com cruzamentos, concordâncias ou discordâncias no diálogo aberto e interior dos heróis, sempre com pensamentos, palavras, ideias que passam por diferentes vozes, “soando em cada uma de modo diferente”, o diálogo exterior é inseparável do diálogo interior e ambos não se separam do grande diálogo que é o romance (BAKHTIN, 1997, p. 271).

3 Conclusão

Fica claro, desse modo, que as múltiplas vozes que se manifestam no romance de Bernardo Carvalho representam uma espécie de democratização do discurso, que se assume como parcial, incompleto e passível de preenchimentos e questionamentos. Carvalho trabalha, dessa forma, na linha do romance contemporâneo, abrindo-se cada vez mais à relativização dos fatos e à ficcionalização destes. Recaímos, nesse ponto, inevitavelmente, nas fronteiras (imaginárias) entre realidade e ficção, tópico já abordado no presente estudo, uma vez que todo discurso se assume como incompleto e parcial.
Em síntese, as vozes que falam em Nove Noites, mais que narrar o suicídio de Buell Qauin, trazem como tema central a ficcionalização da vida – ou a sua tomada de consciência - na contemporaneidade, onde o fato e a História não podem mais ser resgatados, já que a ficção escreve as linhas da(s) nossa(s) história(s).

4 Referências

BAKHTIN, M. M. O discurso em Dostoievski. In: BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievski. Tradução de Paulo Bezerra. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.

CARVALHO, Bernardo. Nove noites. São Paulo: Companhia de Bolso, 2008.

HUTCHEON, Linda. Metaficção historiográfica: “O passatempo do tempo passado”. In: Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

______. A intertextualidade, a paródia e os discursos da história. In: Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

ROANI, Gerson Luiz. Sob o crivo dos cravos: As portas abertas por Abril. In: Saramago e a escrita do tempo de Ricardo Reis. São Paulo: Scortecci, 2006.

TEZZA, Cristóvão. Mikhail Bakhtin e a autoridade poética. Disponível em: <http://pphp.uol.com.br/tropico/html/indice/3,2.shl>. Acesso em: 9 abr. 2008.

WHITHE, Hayden. O fardo da história. In: Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo: EDUSP, 1994.a

______. A interpretação na história. In: Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo: Edusp, 1994.b

______. O texto histórico como artefato literário. In: Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo: Edusp, 1994.c

______. Historicismo, história e a imaginação figurativa. In: Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo: Edusp, 1994.d

______. As ficções da representação factual. In: Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo: Edusp, 1994.e

Artigo recebido em: 16 de novembro de 2009.
Aceito em: 25 de outubro de 2009.


* Bolsista do PROBIC/FAPEMIG e graduando em Letras pela Universidade Federal de Viçosa;
** Professora substituta do Coluni – Colégio de Aplicação da Universidade Federal de Viçosa e graduada em Letras pela Universidade Federal de Viçosa.
*** Orientadora. Doutora em Teoria Literária pela Universidade Estadual de Campinas e professora substituta de Literatura Brasileira do Departamento de Letras da Universidade Federal de Viçosa.

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