A Revista Vértices comemora 15 anos de existência e para que todos possam conhecer um pouco de seu sucesso e suas publicações, postaremos toda semana um artigo de uma de suas edições. Esta semana postaremos um dos artigos da Revista Vértices 12 número 1, publicada em 2010.
Artigo: Nove Noites: o labirinto de vozes
Nine nights: the
labyrinth of voices
Rodrigo Corrêa
Martins Machado
Rosana Aparecida de Paula
Simone
Cristina Mendonça de Souza
O romance Nove Noites, de Bernardo Carvalho, foi publicado em 2002 e já
alcançou consagração. Nesta obra, Carvalho emaranha realidade (História) e
ficção, bem como trabalha com um jogo de múltiplas vozes na construção do
discurso. O romance abre margens para a crítica literária em dois sentidos
distintos, mas que, ao mesmo tempo, se complementam: o estudo da relação entre
ficção e história e também sobre a polifonia, conceito definido e teorizado por
Mikhail Bakhtin. Por acreditarmos na complementaridade das duas linhas de
análise crítica, esse trabalho pretende fazer um estudo sob as duas linhas de
análise citadas.
Palavras- chave:
Bernardo Carvalho. Nove Noites. Literatura e História. Polifonia.
The novel Nine Nights by Bernardo Carvalho, was published in 2002 and
has been wide acclaimed In this book, Carvalho entangled reality (history) and
fiction, and works with a set of multiple voices in the construction of
discourse. The novel is open for literary criticism in two different senses
which, at the same time, complement each other: the study of the relationship
between fiction and history, and polyphony, a concept defined and theorized by
Mikhail Bakhtin. Because we believe in the complementarity of these two lines
of critical analysis, this paper intends to do a study under these two
perspectives of analysis.
Key-words: Bernardo Carvalho. Nine Nights. Literature and History.
Polyphony.
1 Nove
noites: (há?) limites entre verdade e ficção
A história, a ficção e a intertextualidade são elementos constitutivos de
um novo paradigma literário no mundo moderno, chamado, por Linda Hutcheon (1991),
metaficção historiográfica. Esta nasce
da junção da literatura e da história, por parte dos romancistas. Ela consiste
no ato de um autor, através de seu romance, repensar o fato histórico e buscar
um novo sentido à história anteriormente conhecida. Não raras vezes iremos nos
deparar na contemporaneidade, com o diálogo entre história, jornalismo e
ficção.
A história é considerada como dentro de uma categoria de escrita
classificada por Hayden White (1994) como “escrita discursiva” e é recorrente a
presença do elemento ficcional. Os historiadores, ao fazerem suas pesquisas,
não lidam com fatos completos e sim com fragmentos. Para juntar esses
fragmentos a fim de formar um todo significativo, eles têm de “inventar” parte
dos fatos. Hayden White afirma que:
O modo como um a determinada situação
histórica deve ser configurada depende da sutileza com que o historiador harmoniza
a estrutura específica de enredo com o conjunto de acontecimentos históricos
aos quais deseja conferir um sentido particular.Trata-se essencialmente de uma
operação literária, vale dizer, criadora de ficção.(WHITE, 1994c, p.102).
Sabemos que o historiador e o escritor têm em seus textos várias
possibilidades diferentes de interpretá-los. Enquanto o escritor muitas vezes
nos aponta essas várias direções, o historiador se liberta de algumas
possibilidades visionais e foca somente em uma, naquela em que ele mais
identifica seus valores, que julga ser a verdadeira; podemos notar que o
discurso histórico nada mais é que um discurso figurativo moldado por seus
estudiosos.
A ligação entre o histórico e o ficcional deve ser vista como precursora
de uma das possibilidades de se ampliar o âmbito e o valor da ficção. Só
enriquece a História e a ficção, na medida em que faz com que a memória humana
e a forma artística se unam, alimentando “os sistemas de significação da nossa
cultura”. (HUTCHEON, 1991, p.176).
A metaficção historiográfica nada mais é que a junção de três elementos:
história, ficção e intertextualidade, a fim de criar uma nova forma artística
que questione valores, pense por si própria e que não busque uma verdade, mas
mostre todas as outras que poderiam existir.
Muitos escritores estão se ingressando na escrita de metaficções
historiográficas. Eles utilizam fatos, os remodelam para construir uma nova
história e até mesmo “um mundo novo”; utilizam os fatos narrados pelos
historiadores e fazem exatamente o que os historiadores fizeram um dia, mas ao
invés de preencher as lacunas existentes entre um documento e outro, eles reinventam
a História, a fim de que se adequem a seus pensamentos, as histórias que julgam
mais condizentes com a verdade.
O autor, muitas vezes, como é o caso de José Saramago em Memorial do
Convento, reinventa a História, a fim de que os oprimidos, antes esquecidos
pela historiografia de seu país, ganhem voz no discurso e histórico e recebam
as honras de quem, realmente, trabalhou para a construção de um país.
Essa metaficção historiográfica não questiona somente os valores
historiográficos, ela questiona e critica os valores da sociedade tanto de
ontem como de hoje. Os escritores “investem na escrita de uma história
transfigurada com vestes ficcionais”. Para tanto, resgatam acontecimentos do
passado e fazem com que os leitores repensem tais fatos e possam também de
maneira crítica reinterpretá-los de acordo com sua própria ótica (ROANI, 2006, p.36).
É nessa linha da metaficção historiográfica que Bernardo Carvalho escreve
seu romance. A leitura de Nove Noites costuma despertar nos leitores,
como primeira impressão, o questionamento acerca do que é ficção e o que é
realmente “verdade” nesse romance.
Plausível questionamento, uma vez que a narrativa se fundamenta em um
acontecimento verídico, a morte do antropólogo norte-americano Buell Quain –
que viveu entre os índios Krahô, no Tocantins, e se matou em 1939 – mas que se
entrelaça a fatos e personagens fictícios. É a partir desse fato que o enredo
se desenvolve, somando as intervenções de um fictício amigo de Buell, com quem
ele teria conversado nove noites antes de seu suicídio, que era um jornalista
interessado em escrever um romance sobre a história do suicídio de Quain.
Não há, dessa forma, um único narrador; há, de um lado, um morador de uma
cidade onde Buell Quain frequentava – por ser a mais próxima da aldeia onde
estava - e que, aos poucos, se aproxima dele e torna-se seu confidente durante
nove noites. Intercaladas aos relatos desse morador, emergem as narrativas de
um homem que afirma ter pesquisado a vida do antropólogo com o intuito de
escrever um livro sobre a morte desse.
O primeiro capítulo do livro é uma exortação do “amigo” de Buell a quem
futuramente vier a pesquisar a morte do antropólogo:
Quando vier à procura do que o passado
enterrou, é preciso saber que estará às portas de uma terra em que a memória
não pode ser exumada, pois o segredo, sendo o único bem que se leva para o
túmulo, é também a única herança que se deixa aos que ficam, como você e eu, à
espera de um sentido, nem que seja pela suposição do mistério, para acabar
morrendo de curiosidade. Passei anos à sua espera, seja você quem for, contando
apenas com o que eu sabia e mais ninguém, mas já não posso contar com a sorte e
deixar desaparecer comigo o que confiei à memória [...] Amanhã pego a bolsa de
volta para Carolina. Mas antes deixo este testamento para quando você vier e
deparar com a incerteza mais absoluta (CARVALHO, 2008, p.11).
No capítulo seguinte, a voz é a do jornalista que narra a descoberta da
história de Buell Quain e a forma pela qual se interessou em escrever o romance:
Ninguém nunca me perguntou. E por
isso também nunca precisei responder. Não posso dizer que nunca tivesse ouvido
falar nele, mas a verdade é que não fazia a menor idéia de quem ele era até ler
o nome de Buell Quain pela primeira vez num artigo de jornal (...)quase
sessenta e dois anos depois de sua morte às vésperas da 2ª Guerra. (...) O artigo tratava das cartas
de outro antropólogo, que também havia morrido entre os índios do Brasil (...)
e citava de passagem, em uma única frase, por analogia, o caso de Buell Quain,
que se suicidou entre os índios Krahô, em agosto de 1939 (CARVALHO, 2008, p.13).
A partir daí, o jornalista se envolverá com várias pessoas que conviveram
com o antropólogo. A primeira que procura é a antropóloga Mariza Corrêa, que
havia escrito o artigo que lera. É a antropóloga que dá ao jornalista ideias,
ainda que vagas, de quem ele possa procurar.
Descobre que Buell viera para o Brasil sob orientação de Franz Boas,
diretor do departamento de antropologia de Columbia, interessado na riqueza
etnológica brasileira. Aqui no Brasil, passou a ser orientado pela pesquisadora
Heloísa Alberto Torres. Descobre também que Buell Quain viera com intuito
inicial de estudar a vida dos índios Karajá, mas ao tomar consciência de que os
Trumai estavam em vias de extinção, decide pesquisá-los.
As pessoas com as quais Buell tinha mantido contato, e que o jornalista
usa como fonte de investigação, apresentam fatos diversos e, por vezes,
contraditórios. O trabalho do jornalista é dificultado pelo fato de o
antropólogo ter deixado cartas aos seus conhecidos, com opiniões
contraditórias. Em algumas, descrevia o Brasil como uma terra de maus hábitos e
de gente rude; já em outras, trata a gente que conheceu aqui como civilizada e
pacata.
As contradições serão muitas, na pesquisa do jornalista, como já havia
exposto o “amigo” de Quain, sobre as várias versões que a história assumiu. O
certo é que entre os relatos, fica evidente o tom melancólico e solitário de
Quain. O antropólogo era homem de poucos amigos e conversas, com frequentes
pensamentos ligados à morte:
O importante ele me disse ainda
na primeira noite em Carolina, sem que eu pudesse entender do que realmente
falava, ' é que os Trumai vêm na morte uma saída e uma libertação dos seus
temores e sofrimentos'. [...] Agora, quando penso nas suas palavras cheias de
entusiasmo e tristeza , me parece que ele tinha encontrado um povo cuja cultura
era a representação coletiva do desespero que ele próprio vivia como um traço
de personalidade (CARVALHO, 2008, p.51).
O jornalista renova suas
esperanças investigativas ao conhecer um casal de antropólogos, que conheciam
um dos índios da época em
que Buell havia cometido o suicídio. Por esse motivo, decide
ir à aldeia dos Krahô, para conversar com esse índio. Mais uma vez, não
descobre nada de relevante.
Em meio a tantas pistas falsas e
sem sentido, no momento em que o pai do jornalista está no hospital, ele acaba
presenciando a morte de um americano, que lhe diz as últimas palavras como se
ele, o jornalista, fosse o Buell.
Por causa desse momento que, ao
ler o nome de Buell Quain, no artigo, o jornalista se lembra dessa pronúncia
“Bill Cohen!” e faz uma descoberta: aquele homem que havia morrido perto dele
no hospital era o fotógrafo que havia se tornado amigo de Buell Quain.
Na esperança de que a família
desse fotógrafo pudesse ajudá-lo, vai ao asilo onde ele havia passado seus
últimos anos de vida e consegue o endereço do filho do fotógrafo. Ao chegar aos
Estados Unidos, o jornalista, disfarçado de empregado de uma companhia de
transportes, consegue entrar na casa do filho do fotógrafo e lá descobre que
aquele homem não era filho legítimo; fato descoberto quando o fotógrafo estava
no Brasil. Mas até mesmo esse fato da paternidade é colocado em questão, o que
comprova a citação a seguir: “Não são só os índios que dizem o que você quer
ouvir, achando que assim podem agradá-lo, como se não houvesse realidade.” (CARVALHO,
2008, p.147).
Fica subentendido que a história
da falsa paternidade é uma desculpa, uma mentira inventada pelo homem, para se
desvincular de qualquer responsabilidade. Assim como os índios, então, entre os
familiares do fotógrafo não se poderia esperar verdades.
As dúvidas persistem, e os
detalhes insistem em confundir o leitor, uma vez que o jornalista chega a
afirmar que aquele homem se parecia muito com Buell Quain. Os fatos se
misturam, se confundem e a explicação que fica é a que o jornalista dá quando
chega nos Estados Unidos: “A ficção começou no dia em que botei os pés nos
Estados Unidos.”(CARVALHO, 2008, p. 142)
A morte de Buell Quain é
desvendada? Não. Fica o mistério que a envolveu e a “contribuição” temática que
deu para a composição do romance que busca a todo momento fatos para o compor.
O jornalista encontra, ao voltar
de avião para o Brasil, um rapaz “de cabelos cacheados, olhar simpático, embora
fosse feio”, que vinha ao seu lado, e
dizia vir ao Brasil estudar os índios. Instigador? Mais um motivo de reflexão?
Poderia até ser, mas o jornalista já está convencido de que a verdade não é
fácil de ser encontrada, a ficção já é o caminho pelo qual se engendrará.
Nessa hora, me lembrei sem mais nem menos de
ter visto uma vez, num desses programas de televisão sobre as antigas
civilizações, que os Nazca do deserto dom Peru cortavam as línguas dos mortos e
as amarravam num saquinho para que nunca mais atormentassem os vivos (CARVALHO,
2008, p.150).
Os limites entre verdade e ficção
são tênues e o resultado de toda a pesquisa do jornalista não são fatores que
nos levam a acreditar que a obra retrata a morte do antropólogo de forma
verídica. Nas palavras de Bernardo Carvalho:
Esse é um livro de ficção, embora esteja
baseado em fatos e pessoas reais. É uma combinação de memória e imaginação –
como todo romance, em maior ou menor grau, de forma mais ou menos direta (CARVALHO,
2008, p.9).
O que é mais visível é a forma
pela qual várias “verdades”, vários discursos se entrecruzam, de forma que não
é possível desvendar o que é real do que
é ficção.
É interessante observar que o
romance, na verdade, não narra a história do suicídio de Buell Quain, como
podemos ser levados a pensar inicialmente, mas é um romance que fala da busca
de fatos para a composição de um romance.
É metalinguístico? Sim. Trata-se de um romance que fala sobre o processo
de criação de um romance e as implicações entre realidade e ficção. No fim, um
questionamento sonda a mente do leitor: Faço literatura por que não consigo
escrever a verdade das coisas e fatos? Existe a verdade? Essas perguntas são
provocações que não têm resposta exata ou direta, assim como a morte de Buell
Quain.
2. A polifonia em nove noites
Para Mikhail Bakhtin (1997), Dostoievski foi o criador de um novo gênero
literário, o romance polifônico, cuja característica principal é o fato de que
na obra do romancista as vozes do texto não se sujeitam a um narrador
centralizante; elas se relacionam em condições de igualdade. Há a predominância
do discurso do outro interiormente dialogado e refletido, com a alternância de
várias vozes.
É o que ocorre em
Nove Noites. A história
central, ou seja, a descoberta dos motivos que levaram ao suicídio de Buell
Quain, não é submetida a uma voz centralizadora; pelo contrário, várias vozes
se entrecruzam na tentativa de desvendar a morte do antropólogo.
Há duas vozes principais, estruturadoras do romance – a do jornalista e a
do morador que se diz amigo de Buell –,
e “subvozes”, que auxiliam na construção “ labiríntica” da narrativa,
caracterizando a obra como um romance polifônico. A construção romanesca, neste
caso, é desenvolvida através de duas partes paralelas, que se intercalam com o
desenvolvimento do enredo: de um lado uma voz de uma pessoa – um homem que
morava no interior do Brasil, onde Buell foi estudar tribos indígenas – que diz
ter passado nove noites antes da morte de Buell Quain junto dele e que escreve
uma carta destinada a alguém tentando esclarecer os fatos da morte do
antropólogo; e de outro lado, temos um homem que lê sobre a morte do
antropólogo americano em um jornal e se interessa em buscar desvendar o motivo
que levou o jovem a se matar.
No romance Nove Noites, a polifonia e a autonomia discursiva atribuídas às
diferentes personagens criam uma dimensão democrática da estrutura do romance.
Todas as personagens têm voz ativa e discutem entre si. Se levarmos em consideração
a ideia que em todo discurso sempre temos um locutor e um interlocutor que
buscam se influenciar, afim de que possam convencer um ao outro, podemos dizer
que todo esse diálogo presente na obra, entre os personagens e também entre
personagens e leitor, quer convencer-nos das diversas possibilidades pelas
quais o jovem antropólogo se matou.
Por um lado, temos o amigo de Buell na sua carta, que tenta nos mostrar
que ele morreu por um motivo; enquanto por outro lado, temos o jornalista que
nas suas pesquisas achou outro motivo, distinto do amigo de Buell, que o levou
a inferir que o jovem morreu por outra causa.
Às vezes confundimos a palavra dialógico com polifônico. Para Bakhtin,
dialógico por principio define um traço constitutivo da linguagem, em todas
suas realizações, e polifônico, como vimos, é o fato de várias personagens
terem voz ativa no texto; nessa mistura acrescenta-se o traço positivo das
duas, que contempla todas as manifestações de forma democrática; “a polifonia
dostoievskiana passaria e ser a marca de toda a prosa romanesca”. Daí, surge a
idéia de não acabamento, a recusa da última palavra. Seria o gesto de aceitar
todas as vozes como equivalentes, que é o fato marcante, senão o mais
importante de seu texto. Podemos aceitar, com equivalência, todas as vozes
presentes em Nove Noites, e cada
uma delas possui sua verdade e sua importância (TEZZA,
2008, p.2).
Observamos que, no romance dialógico de Dostoiévski, o autor não introduz
diretamente a sua voz, seus pensamentos e suas ideologias, ele não mostra a sua
cara (no texto), sim a metamorfoseia em várias vozes. Essas vozes discutem
entre si, estabelecendo um discurso intenso em todo o seu texto. Também assim ocorre
com o romance de Bernardo Carvalho, no qual o autor não se mostra de maneira
direta sua voz no texto, ele dá liberdade a suas personagens a fim de que elas
possam dialogar dentro do livro e para que, dessa maneira, cada uma possa
mostrar a sua própria verdade.
De acordo com Bakhtin (1997), não há, no texto de Dostoiévski, bem como
no de Bernardo Carvalho, a presença da ideia de que quem está do lado de fora do
texto seria o dono da verdade. A prosa de ambos os romancistas, então, se nutre
da inteira relação entre autor e herói; a renúncia da autoridade do autor passa
a ser um pressuposto indispensável. A linguagem deles é uma linguagem
relativizada, desprovida de autoridade, o papel do narrador é nos dizer como as
coisas são relativas, como não podemos ter certeza de nada.
A palavra de quem fala no romance de Dostoievski é construída à imagem do
homem que fala na vida concreta, esse fundamenta o poder de sua palavra na
palavra do outro, claro, que conservando parte de sua visão de mundo original;
nenhuma das duas palavras pode sumir na enunciação, a prosa é feita exatamente
da discussão aberta entre elas- todo o tempo- pela divergência de idéias.
É exatamente o que ocorre na carta
a qual o amigo do antropólogo escreve, já que para redigi-la, buscando explicar
a causa que levou o rapaz a se suicidar, este amigo se fundamenta nas conversas
que ele teve com Buell – nove noites antes da morte – e infere o provável
motivo. Ele somente busca comprovar o que acredita com pequenas partes de
diálogo que teve com o jovem antes deste se suicidar. Esta enunciação é feita
pala junção dos dois discursos – o que Buell contou ao amigo e o que o amigo
acha – e o tempo todo eles estão em constante discussão.
Isso acontece também com o jornalista que, para criar a sua própria
verdade, passa todo o livro discutindo com diferentes vozes que julga importante,
juntando o que elas dizem ao que ele já sabia, até chegar a uma conclusão e a uma
criação da sua própria verdade, sem deixar de lado todos aqueles processos
discursivos pelos quais já havia se submetido e muito menos sem deixar de lado
a visão que ele tinha previamente construída desta história.
Pelo fato de haver um discurso constante na obra romanesca carvaliana,
tem-se a impressão de que o autor e suas personagens falam a mesma linguagem. O
importante não é identificarmos somente a fala destas, mas sim estabelecer
sobre qual ângulo esses discursos se opõem ou se confrontam na obra, e qual a
importância de dois discursos paralelos na obra. Nela predomina um discurso com
o discurso do outro interiormente dialogado e refletido, este é de grande importância
na medida em que não ocorre esse diálogo sem um olhar para a opinião do outro. O
autor coloca dois discursos paralelos em sua obra, para poder dar um maior
dialogismo dessa em relação aos leitores que a receberão, na medida em que eles
terão que discutir internamente, para assim poderem chegar a uma conclusão
sobre a morte do antropólogo. Ou autor deixa seus leitores livres para que
possam construir, assim como o jornalista da obra, a partir dos dados
oferecidos no livro, um possível desfecho que leve às causas do suicídio de
Buell.
Em alguns pontos do romance carvaliano, há a narração da vida de Buell
desde quando foi realizar seu estudo com os índios. Em algumas partes, podemos
perceber que o pesquisador sempre buscou certa distância em relação a seu
objeto de estudo, para viver uma “falsa” independência, já que, segundo Mikhail
Bakhtin (1997), mesmo quando existe um afastamento, por parte do herói, de
todas as pessoas que conhece, da sociedade, para viver sozinho e isolado, ele
não consegue gozar desta sua falsa independência, pelo fato de que começa a desenvolver um diálogo interno,
consigo mesmo, convencendo-se, acalmando-se e representando o outro em relação
a si mesmo. Assim, ele acaba criando uma segunda voz com a qual dialoga. Essas
vozes distintas atuam numa relação de força, com os dois sujeitos históricos
que se confrontam, tomando formas diferentes diante desse discurso que travam.
O diálogo é tão importante que, quando não há com quem dialogar, a personagem
cria outra, mesmo que internamente, para que possa discutir; ou seja, ”o
diálogo permite que ele substitua com sua própria voz a voz de outra pessoa”.
(BAKHTIN, 1997, p.214)
Quando Buell tenta fugir de toda essa solidão, ele busca conversar
consigo mesmo e com os amigos, porém com estes, nas poucas vezes que vimos
diálogo, foi através de cartas.
Esse dialogismo interior significa que, com o uso da linguagem concreta,
viva, no evento do ser, haverá pelo menos dois pontos de vista distintos para
entrar em ação, criando uma discussão. Isso nada mais é que o equilíbrio que o
autor busca para suas personagens. Ele não quer mostrar que uma ou outra estão
certas, mas sim contrapor suas ideias para que possam discuti-las, havendo
outra opinião para ajudar o herói com seus medos e problemas.
Da mesma forma que Bakhtin observa
o dialogismo interior na obra romanesca de Dostoievski, podemos ver que em Nove Noites também há casos em que o
herói, em seu discurso, tem um extremo diálogo interior, apelando para tudo o
que pensa e fala, inclusive objetos que o cercam. Para ele, pensar no objeto
seria apelar para ele. Ele apela para esse objeto porque sabe- mesmo
intuitivamente- que sobre cada enunciação da linguagem concreta, além de seu
dialogismo intrínseco, constituidor do sujeito, incidem outras linguagens, numa
rede que engloba não só os interlocutores, mas também os objetos, objetos estes
que se apresentam saturados de linguagem e valor. O próprio apego às palavras,
ao ato de escrever cartas e de anotar tudo o que vivia e passava com os índios era
uma forma de apelo, o jovem antropólogo buscava ajuda, até o momento que não
mais suportando algo que o angustiava, que ele temia, suicidou-se.
As diferentes vozes presentes no livro não têm
autoridade própria, não são totalmente autônomas. Em cada palavra, pronunciada
por uma há interferência das outras, não se verifica um diálogo de consciências
independentes. A palavra do outro influencia diretamente o estilo da novela,
não há um discurso monológico e sim um discurso feito sob a tensão dialógica em
toda a obra (BAKHTIN, 1997).
Em consequência desse fato, as duas vozes
centralizadoras do romance carvaliano (a do fictício amigo de Buell e a do
Jornalista) constroem seus discursos como réplica de todas as palavras, que
ouviram dos outros e que os tocaram, reunidas por ambos de acordo com as
experiências ouvidas e vividas. Cada pessoa com quem polemizam, desenvolve suas
palavras com tons e acentos modificados – cada um tem uma maneira diferente de
contar a trajetória de Buell Quain. Isso faz com que para os dois interessados
na vida e morte do antropólogo americano, cada pessoa nada mais seja que um
símbolo. Cada personagem entra nos discursos interiores como símbolo da
resolução de seus problemas ideológicos, por isso cada uma o perturba e ganha
papel em seu discurso interior. “Como resultado, seu discurso interior se
desenvolve como um drama filosófico, onde as personagens são concepções de vida
e mundo personificadas, realizadas no plano real” (BAKHTIN, 1997, p. 242).
Ao buscar a identidade, a verdade, nos dois discursos,
seus “heróis” o fazem encontrando as diversas vozes, comparando-as,
combinando-as, em busca de sua própria voz. As vozes presentes na obra são, muitas
vezes, penetrantes e interferem segura e ativamente no discurso dos heróis para
que possam ajudá-los a encontrar sua voz própria. Não podemos dizer que esse
discurso penetrante é decisivo, pois os heróis principais também são marcados
por um diálogo interior intranquilo e inconstante quanto o dos outros.
Em nenhum momento encontramos um discurso dominante, seja do autor ou das
duas vozes centralizadoras do romance. Esse diálogo entre os elementos do texto
é “um momento essencial da própria idéia do autor”. E para ocorrer a
representação do homem interior, é necessário que mostre a comunicação dele com
outro, pois somente na “interação do homem com o homem revela-se o “homem no
homem” para outros e para si mesmo” (BAKHTIN, 1997, p. 256).
No romance de Bernardo Carvalho, “tudo se reduz ao diálogo, à
contraposição dialógica enquanto centro. Tudo é meio, o diálogo é o fim. Uma só
voz nada termina e nada resolve. Duas vozes são o mínimo de vida, o mínimo de
existência” e o romance carvaliano nos traz uma infinidade de vozes, que fazem
com que seu texto seja considerado altamente dialógico (BAKHTIN, 1997, p. 257).
Os próprios princípios de construção do autor são os mesmos das
personagens, com cruzamentos, concordâncias ou discordâncias no diálogo aberto
e interior dos heróis, sempre com pensamentos, palavras, ideias que passam por
diferentes vozes, “soando em cada uma de modo diferente”, o diálogo exterior é
inseparável do diálogo interior e ambos não se separam do grande diálogo que é
o romance (BAKHTIN, 1997, p. 271).
3 Conclusão
Fica claro, desse modo, que as múltiplas vozes que se manifestam no romance
de Bernardo Carvalho representam uma espécie de democratização do discurso, que
se assume como parcial, incompleto e passível de preenchimentos e
questionamentos. Carvalho trabalha, dessa forma, na linha do romance
contemporâneo, abrindo-se cada vez mais à relativização dos fatos e à
ficcionalização destes. Recaímos, nesse ponto, inevitavelmente, nas fronteiras
(imaginárias) entre realidade e ficção, tópico já abordado no presente estudo,
uma vez que todo discurso se assume como incompleto e parcial.
Em síntese, as vozes que falam em Nove Noites, mais que narrar o suicídio de
Buell Qauin, trazem como tema central a ficcionalização da vida – ou a sua
tomada de consciência - na contemporaneidade, onde o fato e a História não
podem mais ser resgatados, já que a ficção escreve as linhas da(s) nossa(s)
história(s).
4 Referências
BAKHTIN, M. M. O discurso em
Dostoievski. In: BAKHTIN, Mikhail. Problemas da
poética de Dostoievski. Tradução de Paulo Bezerra. 2.ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1997.
CARVALHO,
Bernardo. Nove noites. São Paulo: Companhia de Bolso,
2008.
HUTCHEON, Linda.
Metaficção
historiográfica: “O passatempo do tempo passado”. In: Poética
do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
______. A intertextualidade,
a paródia e os discursos da história. In: Poética do pós-modernismo: história,
teoria, ficção. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
ROANI, Gerson
Luiz.
Sob
o crivo dos cravos: As portas abertas por Abril. In: Saramago e a escrita do tempo de Ricardo Reis.
São Paulo: Scortecci, 2006.
WHITHE, Hayden. O fardo da história.
In: Trópicos do
discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo: EDUSP, 1994.a
______. A interpretação
na história.
In: Trópicos do discurso:
ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo: Edusp, 1994.b
______. O texto histórico
como artefato literário. In: Trópicos
do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo: Edusp, 1994.c
______. Historicismo,
história e a imaginação figurativa. In: Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo:
Edusp, 1994.d
______. As ficções da representação
factual. In: Trópicos do
discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo: Edusp, 1994.e
Artigo recebido em: 16 de novembro de 2009.
Aceito em: 25 de outubro de 2009.